12 abril, 2007

Eu sabia que tanta popularidade não era só devido à belíssima tatuagem que ele exibia na perna esquerda. Levaram semanas pra fazer, eu me lembro bem. Cada dia que eu o reencontrava, revelava um pouco da idéia louca dele, e no fim, depois de um trabalho fenomenal do tatuador, podia-se ver quatro mulheres semi-nuas com os braços levantados, formando o tronco e galhos da árvore. As folhas chegavam bem perto do joelho, e a raiz terminava no pé dele. Dos dedos das mãos das mulheres formavam-se os galhos. Dos dedos dos pés, as raízes fincadas no chão. Coisa linda de ver mesmo. Os seios das mulheres perfeitamente desenhados e eu gostava mais da moça que tomava conta da panturrilha dele. Cabelo esvoaçante, mãos-galhos sinuosos, e um par de seios de dar inveja. Eu brincava que ia levá-lo quando conseguisse pagar uma cirurgia para corrigir os meus. "Daí eu mostro pro doutor e digo: ó, quero assim !" Ele ria e dizia pra eu párar de bobagens.

Qualquer lugar que a gente estivesse pela região, ele conhecia todo mundo. Era um homem bonito, mas não de beleza de primeira, sabe? Precisava de algum tempo para se reparar nele. Embora ele nunca tivesse me contado nada, e eu nunca tivesse perguntado, eu sabia o que ele fazia e o respeitava, assim como ele sempre me respeitou também. Sempre tinha dinheiro, sempre pagava pra todo mundo, sempre era o cara rodeado de gente. Ingenuamente, poderia se pensar que era por causa da grana, mas não. A gente sabia bem.

Foi meu primeiro e único amigo fora-da-lei. Eu questionava um pouco, tipo euaquicommeusbotões, mas gostava da companhia dele, era um amigo mesmo, e isso sempre falou mais alto. Um dia, num barzinho, ele chegou em um carro diferente. Eu já estava lá, estava lotado, ele até esperou mesa, estava com um punhado de amigos. Me cumprimentou com o abraço caloroso de sempre, roubou uma lasca da minha pizza, conversou, riu, até a mesa liberar e ele ir pra lá. Um tempo depois, chegaram duas viaturas, uns 6 policiais, muita pressão, arma em punho, perguntavam quem tinha chego no carro tal. Gelei.

Sem provar nada, e todo mundo muito quieto, ele me pega pela mão assim que os policias saem e diz: 'Vem vem! Vão rebocar o carro, vem assistir'. Sem muita opção, fui lá fora, enquanto os policiais rebocavam o carro e ele, de braços cruzados, assistia. Minutos depois, ele joga a chave do carro 'limpo' dele e diz pra um dos amigos: 'vai lá, busca meu carro, que agora fiquei a pé'. Piscou pra mim, passou o braço pela minha cintura e disse: vamos beber!

Uma outra vez, churrasco na casa de alguém, ele vai até meu carro, e com uma mixa, o abre sem o alarme disparar, e em menos de dois minutos, o faz funcionar. Eu nem conseguia pronunciar nada. Daí ele sorri, fecha tudo, bate duas vezes no capô, e diz: 'nesse aqui nunca ninguém vai mexer, sossega.'

Junto disso, nunca fumou nem cigarro, mas traficava. Chamado de 'cara inteligente', vendia, ganhava grana à beça, mas nunca usou. Por isso, a popularidade. Tinha uns funcionários, a mãe que também o ajudava na empreitada - e eu não me assustei com mais nada depois disso, e mil e duzentas namoradinhas. Se não fosse o lado obscuro, o chamaria de bon-vivant. Uma vez vi um cara fissurado, insistindo para que ele vendesse fiado, e ele, numa paciência infinita, explicava que não, que o cara já devia e ele não ia fazer essa. 'Vai, deita, relaxa, vai passar'. Minutos depois, o cara aparece de volta com um relógio pra trocar pela coca. Foi uma das únicas vezes que o vi nervoso. 'De quem você roubou isso, seu safado?' ele berrava. E fez o cara devolver. Todos os respeitavam.

Quando estávamos juntos numa mesma mesa, por exemplo, se ele não saísse tanto devido aos 'negócios', ninguém diria que era um traficante ladrão de carros. Um dia me disse: 'Roubo carros por puro prazer. Sou um filho da puta. Roubo aqui, largo ali, pra polícia achar. Sou um merda.' Eu nunca comentei nada, o que achava, o que não achava. Cada louco com sua mania. Outra vez, fui até a casa dele, e achava a mãe estranhíssima. Uma big casa, uma fortaleza. Ele me recebeu e disse que tinha um pedido pra me fazer. Que pedisse então. Saí de lá com 15 cestas básicas, uma lista de endereços e 50 reais pro combustível. Ele disse estar 'guardado', não podia sair. Nem questionei. Entreguei tudo e mal dormi a noite, em pensamentos torturantes, esquisitos e contraditórios. Soube depois que ele fazia isso semanalmente.

Ele representa pra mim uma época de transição e descobrimento, onde fiquei sabendo que muita gente que eu conhecia fumava maconha e cheirava pó. Gente que eu nem tinha noção que fazia esse tipo de coisa. Nunca tive vontade verdadeira, fora a nicotina e um trago num baseado uma vez, de experimentar qualquer outro tipo de droga; com exceção de um dia, muito mal por causa de um relacionamento frustrado logo depois da minha separação, eu pedi ao Du que me ensinasse a cheirar. Eu estava tão mal, e eu queria que aquela dor fosse embora rápido que pra isso eu faria qualquer coisa. "Me ensina" eu pedia. Ele só me abraçou e ali ficou muito tempo. Depois disse: 'Eu não sei usar isso, doçura. Mas, na boa? Nem se eu soubesse.'

Então que ele sumiu. Nunca mais ligou, nunca mais soube dele. Burburinhos nas primeiras semanas do sumiço o levavam pelo Brasil afora, mas ninguém sabia exatamente onde ele estava. Com mais tempo, até as especulações acabaram. Infelizmente, meses depois, soube que tinha levado vários tiros e um muito perto do coração. Ninguém sabia direito da história, ele tinha vindo ver a mãe, e o pegaram; outros traficantes - só. Não sabiam me dizer nem se ele tinha sobrevivido ou onde estava internado ou de onde tirar informações precisas. No calor da preocupação, fui até a casa dele, correndo até riscos, mas não tinha absolutamente ninguém lá. Era 2003.

Com o passar dos anos, pra mim, o Du tinha morrido.

Ontem, ao estacionar meu carro no trabalho, caminhando em direção à porta, ouço um Psiu bem baixinho. Nunca olhei pra psiu, então continuei. Foi qdo escutei meu nome e me virei. Dentro de uma pick-up, um cara loiro, de óculos escuros, boné, sorria pra mim. Loiro? LOIRO? Ele tá loiro!

Corri em direção do carro dele, e chorei muito de alegria. Embora ele estivesse loiro, tá vivaço. Ainda muito marcado aqui na cidade, está morando na Argentina. Nem entrei trabalhar. Passamos o dia conversando, rindo, chorando, contanto histórias, pondo a vida em dia. Contou que levou 6 tiros e esteve nos braços da morte, mas que ele quis viver: não havia ainda plantado uma árvore, não podia morrer assim. Gargalhávamos. Andamos muito de carro, comemos bobeira o dia inteirinho e a tardezinha ele me trouxe de volta pro meu carro e chorei de novo, porque sei que muito provavelmente nunca mais o verei.

Perguntei como tinha me achado e ri da minha própria ingenuidade. Ele nem respondeu, rindo também. Disse que nunca esqueceu os amigos e que nunca esquecerá. Falou que tinha deixado um presente pra mim em casa, e que não podia me ligar, nem falar direito onde estava, que eu o perdoasse por isso. Eu não tinha que perdoar nada, já que ele nunca me machucou. E que o presente de verdade era ele se cuidar, não morrer. E ele completou: não, nem plantei a árvore ainda.

Fiquei muito tempo abraçada com ele. E o vi ir embora pro mundo sem leis dele. Grande cara. Na mente, pedi pra Deus olhar por ele. Mas daí senti a contradição de novo, e soltei um 'tsc'. Sei lá, só quero que ele fique bem.

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Em casa, uma caixa de madeira, com 3 vinhos, 1 amarula e uma caixa de Ferrero Rocher.

À sua, Du.
Tim-tim.