03 agosto, 2004

- Vou, pode deixar que desta vez, eu vou.

Recusei quatro vezes e voltaram a me chamar, delicados, nem parecem argentinos...

- Queremos estreitar os laços, reconhecemos teu trabalho, sempre fico sabendo algo de você, sei que a adaptação é complicada.

Hum-rum, deve saber mesmo. Tantos anos de experiência na profissão, e eu apenas engatinhando... mas não consigo conceber a idéia de um almoço assim, no meio de tanta gente que nem tenho sintonia, ainda mais pra falar de negócios, clientes, essas coisas chatas.

Além do mais, ela dá aulas de Ciência Política, fiquei sabendo hoje, é doutorada, e não teve como a minha mente insana compará-la a talzinha da novela Senhora do Destino - falha-me agora, mas é a personagem da Spiller... Que papo rondaria uma reunião assim? Ai.

Os filhos, todos argentinos. Arrepiei no primeiro chamado, não me agradava mesmo esse tipo de coisa. Entrar, ser um dos centros, corresponder... Frases inteligentes, conversação adequada, nenhum "caraca"... ai. Odeio fingir imagem, ser o que os outros desejam que eu seja - e essa é a pior parte do meu cargo. Acabam me colando um rótulo.

Porém, ela - a esposa do meu chefe, tem a voz aveludada, sotaque, murmura um português convincente...

- Convido amigos, pra você se sentir mais à vontade....
(hum, pensei, bonitões, será?)

- Precisamos conversar todos sobre novas palestras de finanças, vão ter algumas em Universidades bem acessíveis...

Palestras. Fujo delas.

E ela continua, numa insistência discreta, afável, fiquei espantada. Tão diferentes daqueles convites impostos que já recebi, que me senti uma franga no galinheiro, terminando com o pescoço torcido. Mais um pouquinho, ela me convencia... Ai.

Explico e ela justifica....

- Compromisso? Adie, mude. Te garanto que vai ser divertido.

Cada um cosidera sua festa-reunião-conversa-companhia-jantar-almoço-encontro o mais brilhante de que a de qualquer outro (conceito esse que se estende ao Universo, creio).

A delicadeza da mulher, pacientemente pela quarta vez:

- Venha para nossa feijoada.

Feijoada?

Não poderia comtemporizar ainda mais, mesmo que tudo o que ela falou não tenha me me entusiasmado em nada. Nem mesmo a feijoada. Ai. Por um flash de segundo, consegui ver meu chefe empanturrado de feijão e rabo de porco, arrotando caipirinha e couve... ai, porque fui pensar nisso?

Bom, sem recusas. Prevejo que a feijoada tem muita importância, importância essa que ainda não consegui alcançar, apenas intuí. Pelo tanto que ela falou de grandes planejamentos.... bem provável que o maior deles, dos planejamentos, seja calcular o quanto de farinha colocará na farofa, mas...

Ando meio dominada por um terror invencível, me fecho em casa... E nem é o frio, porque o Sol deu as fuças novamente... Mas em casa, me sinto protegida. Porém, eu fui.

Na minha cabeça regrada, uma feijoada em plena terça-feira não era nada providencial, mas se eles acham e pagam meu salário, quem sou eu pra falar isso à eles?

E quer saber? Foi um horror dos horrores.

Depois de um reconhecimento gradual do lugar, para me sentir mais com os pés no chão, ao olhar o teto, todo trabalhado em desenhos e entalhes, me senti dentro duma igreja. E dentro de uma igreja não é lugar para feijoada... e aquele teto foi descendo cada vez mais perto da minha cabeça e, ainda assim, consegui notar o tamanho das janelas, todas duplas, uma coisa cinematográfica.

Juro que tentei. Mas não me arrependo em nada, nadinha, de ter combinado um telefonema com um amigo meia hora depois que eu chegasse. Eu, com o celular dele na bolsa, e ele ligando pro próprio número, pra me tirar de lá, caso o previsível acontecesse.... (bendito seja o sexto sentido...)

- Tenho que ir, aconteceu um imprevisto familiar.

Todos entenderam, depois daquele telefonema. Ai, sou má.

Mas vocês nunca entenderão que mansão é aquela... eu nunca me encaixaria ali e nem saberia lidar com tanta parafernalha naquela mesa, para uma feijoada!

Agora, de volta ao refúgio do meu lar.
E meu médico tem razão: virei uma mulher minada.