Foi o que ela disse, enquanto ele, num impulso, mudou de posição no sofá da sala escura. Mudou e mudou de novo, como se a cada novo movimento, a frase escutada mudasse o sentido ou o significado.
- Claro que tenho - ele quase gritou.
Ela calmamente pousou a mão nas pernas, buscou os olhos marrons dele e repetiu:
- Não, você não tem medo de me perder.
- Isso é o que você acha, não fale por mim.
Ela notou que a frase o abalara. E sentiu vontade de dize-la à ele mais um tanto de vezes, só pra vê-lo se remexendo no sofá, inquieto. "Você não tem medo de me perder, você não tem medo de me perder, você não tem medo de me perder". Seu desejo agora era de falar a frase repetidamente, como uma criança mimada querendo um brinquedo. Mas não o fez. Olhando-o, sentia um doce gosto na boca: conseguira mexer com ele, finalmente.
- Entre nós sempre houve uma depressãozinha, coisa tola, praticamente nem precisava saltar. Com um passo nós conseguíamos passar de lá pra cá, de cá pra lá. Hoje essa depressão virou abismo. Nem as nossas mãos se tocam mais, se nos esforçassêmos pra isso. Foi acontecendo e fomos deixando.
Ela tinha quase que prazer em dizer essas palavras. Ele constentava a cada pausa, mas não tinha argumentos suficientes. Era verdade. Era a mais pura e doída verdade.
- Você acredita piamente que não vai me perder. Que não tenho coragem. Você crê que estou em suas mãos. E sabe que, um dia, eu já estive. Só não percebeu que não estou mais. E, definitivamente, você não tem medo de me perder.
- Pára, por favor. - saiu em um sussuro. Eu penso em você sempre. Eu tenho medo de te perder, claro que tenho.
- Lógico que você pensa em mim. Nunca disse ao contrário. Mas a priore é você. Antes de você me fazer um bem, você pensa se esse bem será bom pra você. Ora, e você nem está errado. Só que tudo tem uma consequência, certo? A consequência disso foi eu me cansar desse umbiguismo todo.
- Não é verdade. Não é verdade. Não é verdade. - ele repetia, como um mantra.
E ela deixou ele lá sentado, inquieto, naquela sala escura.
Há o abismo. Só resta saber se há forças para a construção de uma ponte.
[senquiou, rerrê]