28 junho, 2005
Centenas de pequenos atos humilham o ser humano, derrotando-o ... Alguns bem ridículos. Só que não damos o braço a torcer e dizemos: "isso é coisa de homem" ou "isso é coisa de mulher". Fragmentos do cotidiano levam ao atordoamento. A um estado de espírito controvertido: aceitar o desafio ou se render impo/incompetente? Derrota indigesta que indica o quanto andamos nos mantendo longe de aspectos do dia-a-dia. Das necessidades mínimas à sua grandeza.

Houve um momento crucial para mim ontem, em que me senti despreparada para a vida: passar uma camisa. Tarefa complexa que exige técnica, truques, habilidade, paciência e sensibilidade. Ao me ver diante da camisa amarrotada, calculei que seria fácil. Quantas vezes observei alguém passando? Minha avó, minha mãe... A Anita, minha ajudante, faz isso com maestria. Camisas quentinhas e cheirosas nas gavetas.

Sei uma quantidade de coisas, aprendidas ao longo dos meus 29 anos. Ler, escrever, comer, engatinhar, andar, cuspir, coçar, cozinhar, nadar, jogar vôlei, escorregar e me equilibrar sem cair de bunda, fazer amor, beijar, desenhar figuras geométricas (o resto sai uma merda), fazer supermercado, dar nó em gravata de namorado, apontar lápis, ligar televisão, fazer dobraduras em papel, cuidar decentemente de um bebê, usar o banheiro sem deslocar o tapetinho do lugar, fazer letra bonita, arrotar com discrição, preparar bebidas deliciosas, fazer alguns tipos de nós (todos sem utilidade nenhuma; meu melhor nó é o da minha própria vida, que não desfaço nunca), preencher vias e formulários sem reclamar, dançar, jogar na loteria, sentar-me com educação, manter uma conversa, apertar botão do elevador, chamar táxi, descer escadas rapidamente, tomar água sem me molhar, me limpar, amolar faca, abrir potes... Não , eu menti. Não sei tomar água sem me molhar. É sério.

(sei tantas outras coisas também, mas não vou ficar descrevendo aqui...)

Quando liguei o ferro e montei a tábua, eu tinha certeza que a operação seria a das mais simples. Nenhum mistério colocar a tábua em pé, descobri inclusive que ela tem regulador de altura. Depois, apanhei o plug e coloquei-o na tomada. Nada do ferro esquentar. Observando o aparelho, notei que ele tinha um mecanismo: botão com ponteiro que girava sobre uma tabelinha de nomes. O que será isso? A situação se complicava. Ah tá, conforme o tecido, a temperatura. Que coisa mais sábia a tecnologia moderna. Porque há tecidos mais leves, portanto mais sensíveis, e outros pesados, exigindo força total. Fiquei abismada com minha sagacidade.


Ligou, regulou, passou. Elementar.

Ajustei num ponto e o aparelho, educado, respondeu. Apanhei a camisa. Epa! Que tecido é esse? Seda? Chita? Cretone? Ai, que nomes mais antigos, parece Casas Pernambucanas. Algodão? Algodãozinho? Haveria alguma diferença entre os dois, ou tratava-se apenas de uma forma carinhosa? Não, este tecido tem cara de sintético. Mas, o quê? Pensei em ligar para a Anita, mas depois desisti, só de imaginar ela contando o fato para as amigas.

Pensei, pensei. Tentei pensar em outra língua, para não me sentir envergonhada. Concentra no tecido. Jeans não é. Pronto, já distraí outra vez. Tenho pouco tempo. Vou passar a camisa de qualquer modo, seja poliéster ou suedine. Mania essa de arrancar as etiquetas das camisas... lá estaria definido do que o raio da camisa foi feito. Popeline ou piquê. Conheço a terminologia, ouvi o galo cantar muitas vezes, minha mãe é costureira renomada por aqui. Tirando o feltro, de mesas de jogos, veludo e gaze, pra mim dá na mesma falarem viscose, voal, juta, seda mista, tafetá. Cetim tenho uma idéia, seda também. Ah, para o inferno, vai na sorte. Giro o botão, dê no que der. Estou procurando pêlo em ovo. Maldita mania perfeccionista... passa, e tenha cuidado pra não queimar.

Começo pelas costas, superfície larga, menos complicada. Depois as duas frentes. A dificuldade mora nos botões, sendo necessário usar só a pontinha do ferro. Difícil é por baixo deles, ficam uns amassadinhos, que eu cutuco com o ferro. Até que saiu razoável. A gola ficou perfeita. Os ombros, terríveis. De qualquer maneira que passe, ficam vincos. Devia Ter aqui um apêndice (palavrinha mais feia) circular, almofadado, próprio para mangas e ombros.

Antes que me acusem de ineficiente doméstica (ok, ok), vou registrar uma idéia... Existe manual pra tudo, desde como montar um camping até como promover uma manifestação pacifista. Quem sabe eu possa escrever o manual do passador de camisas?


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